quarta-feira, 22 de julho de 2009

Meus lugares por Antonio Prata.

Meus lugares por Antonio Prata, publicado na revista Runners.

Correr faz com que fiquemos íntimos dos lugares. Quando paro o carro no estacionamento do parque Villa-Lobos, por exemplo, fico contente como alguém prestes a reencontrar um amigo. Não há dúvida de que ele não é o melhor parque de São Paulo. Sei que o Ibirapuera, com suas sombras perfumadas de eucalipto e os patos nadando no lago, é muito mais bonito, mas foi em torno dos gramados secos do Villa, pelo caminho torto de concreto que segue entre as árvores mirradas, que comecei a correr. No Villa-Lobos, sinto-me em casa. No Ibirapuera, sou uma visita.

Uma praia pela qual já corri muitas vezes é quase como uma namorada. Conheço detalhes de sua geografia com a palma dos meus pés. Sei que curvas são mais propícias à quais movimentos. Posso enumerar, de cabeça, suas qualidades e defeitos, os horários em que a maré está baixa e dá para percorrê-la calmamente, os momentos em que a maré sobe, a faixa de areia quase some e é preciso correr pela beirada.

A intimidade vem do conhecimento, o conhecimento vem do longo convívio ou da atenção redobrada. No caso dos corredores, acredito, a intimidade é fruto do segundo caso. O pedestre pode caminhar com a cabeça na lua. O corredor, não. O aumento na velocidade exige que estejamos alertas. É preciso desviar de buracos e cocôs de cachorro, afastar-se dos carros, dos ciclistas, driblar pedestres, hidrantes e pipoqueiros. Quando corremos, nossos radares estão sempre ligados, rastreando o entorno, mapeando. Nossa segurança depende desse minucioso estudo da geografia.

Ao contrário do pedestre - esse desatento -, apreendemos ligeiros aclives e declives. Sabemos em que ponto exato começam os paralelepípedos e devemos mudar para a calçada; em frente de quais casas as pedras portuguesas sugerem que corramos pelo meio fio; em que curva da praia a areia dura fica muito inclinada e temos que passar para a fofa, ou ficar naquela faixa estreita, onde vão parar as algas e garrafas pet, cuja densidade perfeita parece ter sido projetada para nossas passadas.

Além da atenção redobrada, acho que há um outro fator responsável pela intimidade entre corredores e lugares. É que, naquele momento delicioso em que pararmos de correr e começarmos a caminhar, quando os batimentos vão se acalmando, o suor vai escorrendo pelas costas e todos os liquidinhos estimulantes produzidos por nosso cérebro vão sendo distribuídos pelo corpo (o salário que recebemos pelo trabalho da corrida), somos tomados por uma espécie de gratidão pelo parque, rua ou praia que nos proporcionou tais sensações. Vez ou outra, quando o fim da corrida coincide com o pôr do sol ou uma brisa gostosa sopra das árvores, dá até vontade de ajoelhar ou fazer algum rito ancestral de louvor à Terra, como os rituais ao sol feitos pelos Incas ou as festas saturnais dos romanos. Seria algo como a “Dança de agradecimento dos 10K, marcha lenta” ou o “Ritual dos 6 K com tiros”. Se alguém achar estranho, eu digo que é uma no-va forma de alongamento, desenvolvida pela NASA, para astronautas vindos do espaço. Ou não digo nada. Aquilo é uma coisa nossa, minha e do parque, da praia ou da rua em que acabei de correr e ninguém tem nada que se meter em nossa intimidade.

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