domingo, 25 de outubro de 2009

A lenda chamada Dean Karnazes


http://runnersworld.abril.com.br/materias/karnazes/index.shtml

O ultramaratonista americano célebre por seus feitos mirabolantes é muito mais que uma potência sobre duas pernas. Acompanhei de perto essa verdadeira máquina chamada Dean Karnazes.

Por Ricardo Hirsch

A inquietação que ele demonstra revela que ali não é o seu lugar. Nem aquele nem nenhum outro que tenha quatro paredes, um teto, cadeiras, ar-condicionado. Para aliviar seu desconforto, eu pergunto se prefere ficar em pé para continuar nosso bate-papo. Rapidamente, ele já está ao lado da cadeira vazia, sorrindo. "É a primeira vez que dou uma entrevista do jeito que gosto de trabalhar." O norte-americano Dean Karnazes, 47 anos, é assim: um homem que odeia ficar sentado. Tanto que diz não usar cadeira quando precisa mexer no computador. Trabalha em pé, fazendo exercícios de fortalecimento para panturrilha (elevação na ponta dos pés) enquanto digita e-mails.

>> Veja fotos do desafio de Karnazes em São Paulo correndo 24 horas pelas ruas da cidade.

Karnazes adora conversar, é simpático, receptivo. Este é nosso segundo encontro, na loja de seu patrocinador na avenida Paulista, em São Paulo. O primeiro havia acontecido três dias antes, e nos conhecemos fazendo o que ambos mais gostamos: correndo. Karnazes visitou o Brasil em setembro. Veio para o lançamento da edição brasileira de seu segundo livro, 50 Maratonas em 50 Dias. O jeito de promover a visita e o livro foi participar de um desafio: passar 24 horas correndo em um circuito que ligava parques e pontos turísticos de São Paulo. Corri ao seu lado por alguns dos 150 km da empreitada. Assim, em duas etapas, pude conhecer melhor o estilo de vida de Karnazes, um atleta único, e entender o porquê de tantos desafios.

Vida Corrida

Você consegue se imaginar correndo por mais de 20 horas seguidas? E correr 560 km, que tal? Pois Dean Karanzes não se cansa de fazer isso e sempre termina qualquer um de seus objetivos com um sorriso no rosto. Quando tinha 15 anos de idade, entretanto, um desentendimento sobre seus treinos de corrida fez com que Karnazes deixasse de correr e experimentasse outras modalidades.

Dean Karnazes é o seu Técnico

Você não precisa ter o desempenho dele, mas use suas dicas para evoluir dentro de sua realidade de treinamento

- Ouça todos e não ouça ninguém. Faça o que for melhor para seu corpo.
"Se alongar faz bem a você e o faz sentir-se melhor, então alongue."

- Coloque sempre uma meta.
"Se for começar a correr, a primeira meta deve ser uma prova de 5 km, depois 10 km, 21 km, 42 km e 50 km em sua primeira ultramaratona."

- Acredite que você é capaz.
"Setenta por cento da sua capacidade está em sua cabeça."

- Mude os locais de treino.
"Evite sempre os mesmos lugares, varie o terreno e o visual. Isso vai estimulá-lo a continuar correndo."

- Esqueça o relógio.
"Uma vez por semana, saia correndo sem relógio, apenas com celular e dinheiro. Não se preocupe com ritmo e distância percorrida. Apenas corra."

Esse desentendimento, aliás, diz muito sobre o jeito de ser do americano. Ele conta que vinha de uma turma de cross country, que eram "corredores de raiz, meio cabeludos, barbudos, desencanados". Corriam sem cronômetro e pregavam que deveriam correr com a alma, deixando o tempo de lado. Quando acabou a temporada das provas de cross country, começariam as provas de pistas. Karnazes tentou migrar. Segundo ele, em seu primeiro treino de pista, o técnico berrava muito em sua orelha a cada volta (400 m), e isso o incomodou. Ao fim do treino, pediu ao técnico que não fizesse mais isso. O treinador perguntou o motivo. "Eu corro com o coração", foi a resposta de Karnazes. Ele conta que o técnico começou a rir o expôs ao deboche frente aos colegas ("Ele corre com o coração... Ha-ha-ha-ha"). Dean diz que pegou o tênis e a camiseta e decidiu que não correria mais.

Pelos 15 anos seguintes, ele surfou, velejou de windsurfe, pedalou de mountain bike. Em seu aniversário de 30 anos, Dean resolveu cuidar mais de sua saúde e a corrida seria a principal ferramenta. Mudou seus hábitos alimentares e o estilo de vida e passou a ser uma pessoa muito ativa. Nos fins de semana, por exemplo, saía de casa de madrugada e corria até outra cidade. Sua família o resgatava pela manhã, momento em que faziam a primeira refeição do dia juntos. Aos poucos começou a ficar famoso por suas histórias, performances e disposição a encarar de maneira bem particular desafios jamais imaginados. Encarar uma maratona já fazia parte de sua rotina semanal e era questão de tempo para algo maior surgir.

Em 2005 foi definido: o plano seria fazer o Endurance 50, que nada mais era que completar 50 maratonas em 50 dias em 50 diferentes estados dos Estados Unidos. O mais curioso é ouvir que ele se considera como nós (corredores comuns), e cita apenas que é uma pessoa muito dedicada e comprometida. "Somos 70% cabeça, 15% treino e 15% dieta... Não tenho nada de diferente ou de especial", diz ele. "É muito fácil olharem para mim e dizer que eu apenas nasci com essa aptidão, por isso consigo correr muitos quilômetros durante dias. O caminho é longo, duro, e, se você não acreditar e não se dedicar, certamente não conseguirá."

Diferentes situações seriam encaradas além das 50 maratonas. Ficar longe da esposa durante os dias de semana e abrir mão das massagens e tratamento com gelo pós-corridas longas eram apenas algumas deles (ou os que previamente eram imaginados). O desafio Endurance 50 começou em 17 de setembro de 2006, com muitas histórias, dificuldades e alegrias. Ele lembra que no dia 24 de outubro teve a melhor surpresa dos 50 dias. Seu filho, que completaria 9 anos nessa data, correu as últimas 9 milhas (aproximadamente 14,5 km) com ele. Nesse momento da entrevista um silêncio pairou no ar e percebi que aquilo realmente importava para ele, que ter as pessoas que ama por perto foi fundamental para completar o desafio.

A parte mais difícil, se é que existe apenas uma quando se trata de 50 maratonas em 50 dias, foi a queda que teve na 38ª maratona. Um corte em seu braço direito poderia acabar com todo o projeto, pois a ida ao hospital tomaria muito tempo e, depois, com menos tempo, pegar estrada seria muito arriscado. Um curativo simples foi feito após a prova, para que encarasse mais uma viagem de ônibus para outro estado... e outra maratona.

O grande final do Endurance 50 aconteceu na maratona de Nova York (naquele ano, 2006, o brasileiro Marílson Gomes dos Santos venceu a prova pela primeira vez). Eu estava lá, acompanhando minha esposa, que também correu os 42 km. Lembro-me de ver Lance Armstrong e logo em seguida Dean Karnazes passando. Para finalizar a conquista, Karnazes esqueceu todo o plano que seguiu nas 49 corridas anteriores e completou a prova em 3h00. Como se intitula normal como nós, ao acordar no dia seguinte e tomar café da manhã, estava feliz por ter completado o Endurance 50, mas com um vazio por não ter um outro objetivo/desafio.

Como quem é movido a desafios, tratou de colocar metas e retomou a corrida um dia após completar as 50 maratonas. "É importante você fazer alguma atividade após uma prova como essa. A perna estará dolorida, se não der para correr, caminhe. Isso fará com que seu corpo se recupere melhor."

Dean Karnazes transmite em seus dois livros — o outro chama-se O Ultramaratonista — que é muito importante você se manter ativo, respeitar seus limites e sempre fazer o melhor nas competições. Mas ressalta: "Se eu chegar em 15º, não me importo. A vitória não é o que me motiva. O que quero para mim é terminar e saber que fiz meu melhor. Se foi a 15ª colocação, que seja. Prefiro isso a chegar em primeiro lugar e saber que não dei tudo de mim, que poderia ter sido melhor. Isso tem que ser verdadeiro". Pode soar piegas ou conversa fiada, mas, ao entrevistá-lo e correr algumas horas ao seu lado, pude perceber o quanto é verdadeiro em seus conceitos e em seu estilo de vida.

Durante os quilômetros que percorri com o ultramaratonista pelas ruas de São Paulo, fica evidente como Karnazes é atento a todos que estão a sua volta, sempre com palavras positivas, estimulantes. Sendo que quem deveria ser motivado era ele, por estar no caminho de completar seu desafio de 150 km na capital paulista.

Contudo, nos momentos em que os corredores perguntavam algo, ele não prolongava a conversa para evitar uma elevação na frequência cardíaca ou alteração de ritmo. Também precisava ficar atento ao piso, percurso e carros que dividiam por muitas vezes a faixa conosco. "Gostaria de estar em um ritmo mais tranquilo e constante, mas é difícil controlar a ansiedade de todos que querem correr comigo. O ritmo lento, o calor, o ar seco e a poluição são sem dúvida nenhuma as maiores dificuldades enfrentadas neste desafio. E as três costelas quebradas, é claro", afirmou enquanto passávamos por Pinheiros, bairro da zona oeste da cidade, sobre o legado de uma queda em uma ultramaratona recente. Será que ele esqueceu dos quilômetros? Quando atingimos o km 100, perguntei sobre as condições de suas pernas. "Elas estão muito bem, chegarão ao fim podendo fazer um pouco mais. Quem sabe amanhã..."

Longe de ser brincadeira, ele faz com que sua cabeça trabalhe a seu favor, trabalha a mente para que esteja sempre pronta a ser surpreendida e exigida. E ponha exigida nisso. Karnazes agora está planejando seu próximo objetivo: "Este será mais longo, quero correr uma maratona em cada país do mundo em um ano". Sua pergunta agora, leitor, deve ser a mesma que fiz: "Quantos países existem?" Antes de responder, ele reforçou o sorriso: "São 195". Não sei quanto a você, mas eu com certeza acompanharei de todas as maneiras possíveis. Quem sabe até correndo de novo algumas juntos...

Dean Karnazes é o seu Técnico

Você não precisa ter o desempenho dele, mas use suas dicas para evoluir dentro de sua realidade de treinamento

- Ouça todos e não ouça ninguém. Faça o que for melhor para seu corpo.
"Se alongar faz bem a você e o faz sentir-se melhor, então alongue."

- Coloque sempre uma meta.
"Se for começar a correr, a primeira meta deve ser uma prova de 5 km, depois 10 km, 21 km, 42 km e 50 km em sua primeira ultramaratona."

- Acredite que você é capaz.
"Setenta por cento da sua capacidade está em sua cabeça."

- Mude os locais de treino.
"Evite sempre os mesmos lugares, varie o terreno e o visual. Isso vai estimulá-lo a continuar correndo."

- Esqueça o relógio.
"Uma vez por semana, saia correndo sem relógio, apenas com celular e dinheiro. Não se preocupe com ritmo e distância percorrida. Apenas corra."

Um comentário:

Anônimo disse...

Li esta reportagem e percebi o quanto é importante termos disciplina. Parabéns ao Ricardo Hirsch pela excelente matéria.