Sou corredor de rua da assessoria esportiva Natal Runner há mais de 2 anos. Já corri algumas dezenas de provas oficiais de 5 e 10 km, além de duas meias maratonas. No entanto, passo por aqui hoje não pra falar do meu humilde currículo de corredor e sim de uma das experiências mais ricas de minha vida.
No dia 12 de setembro de 2010 corri a II Meia Maratona de Natal com o tempo de 2h51min, ficando na última colocação entre os homens. Aposto que você deve estar perguntando neste momento o que leva um corredor, com mais de dois anos de experiência e muito treino, a se vangloriar de ter terminado uma prova de atletismo de longa duração em último lugar. Afinal, que mérito há nisso? E a vergonha frente aos colegas de endorfina, família e treinador? E a cara de decepção – e muita vezes de pena – que as pessoas lhe recebem ao cruzar a linha de chegada, em último?
Pois bem. Não se desespere! Você não é um insensível. Muitas vezes me fazia estas perguntas quando via um corredor terminar uma prova nestas circunstâncias e eu ali, descansado e tranquilo. Ainda me perguntava o que levava um cara a acordar às 6h da manhã de um domingo pra terminar a prova cansado, dolorido e em último. É que, no auge da minha mais completa ignorância, não sabia que a corrida que ele corria era muito mais suscetível de aplausos que a minha ou até mesmo a do vencedor do dia. Impressionante que na corrida, assim como na vida, costumamos subestimar os que “chegam atrás” como se “chegar à frente” fosse a única ou mais importante meta de uma pessoa. Será que chegar em primeiro ou em último, na frente ou atrás, é de fato uma questão matemática onde o primeiro é melhor que o segundo, que é melhor que o terceiro...? Parece-me que não.
Por todo ano treinei focado na II Meia Maratona de Natal, a prova mais badalada do calendário da capital potiguar. Com quatro treinos semanais, buscava condicionamento e equilíbrio pra baixar meu melhor tempo, que era de 2h19min, na 9ª Meia Maratona de João Pessoa, no mês de agosto do corrente ano, prova que teve altimetria e clima muito mais severos que a meia daqui.
Acontece que na semana que antecedeu o “grande dia” minha vida deu um “duplo twist carpado”, daqueles que só Daiane dos Santos sabe dá, ou melhor, sabia. Minha vida pessoal e emocional foi duramente abalada, assim como, por consequência, minha saúde também. Fiquei sem chão. E como correr sem chão para pisar? E foram nestas circunstâncias que acordei no dia 12 de setembro de 2010.
Confesso que cheguei a pensar fortemente em desistir no dia anterior. Quem corre sabe que numa meia maratona a cabeça é tão importante quanto às pernas, de modo que uma não vive sem a outra, sob pena de uma delas sucumbir.
Recebi apoio dos amigos e de Walter Molina, meu treinador. Mas, veio da família, mais precisamente de minha mãe, o apelo inescusável: não desista, por favor. Cheguei à conclusão, inevitável conclusão, que teria que correr aquela prova, em respeito a meus amigos, treinador, família e, principalmente, a mim mesmo. Há momentos na vida que se você desistir de um objetivo - por menor que seja - você desistirá de uma série de outros objetivos, gerando uma “bola de neve” de desistências e abandonos. Uma verdadeira reação em cadeia. E isso era tudo que eu não precisava naquele momento da vida.
Impelido por uma “força estranha” (como se refere a canção de Roberto Carlos) comecei a correr, na companhia salvadora de dois amigos de asfalto, Eduardo e Clessius, cujas sombras foram meus guias nos seis primeiros quilômetros. Nesta parte da corrida confessei a eles a situação que vivia e a vontade de desistir já ali, no início. Antes que terminasse a primeira frase eles me interromperam e disseram: desistir nunca, você consegue.
Com aquelas palavras de incentivo consegui combustível mental para mais alguns quilômetros. Poucos quilômetros. O calor começou a apertar. As dores começaram a brotar das pernas na mesma velocidade em que o suor escorria pelo rosto. Tentava me distrair com a beleza incomparável de nossas praias, com a música que ouvia no MP3 e com lembranças de momentos bons da vida que insistia em tentar lembrar e não conseguia.
Foi na riqueza de diferenças entre os corredores que ali estavam que encontrei alguma distração pra engodar minha cabeça, que autoritariamente mandava que eu parasse. Impressionante como a corrida atrai pessoas tão diferentes. Ao tempo que estava ali, com meus 29 anos, quase morrendo, estavam também atletas com mais de 60 anos correndo como meninos. Obesos correndo como magros. Mulheres como homens. Neste momento lembrei da meia de João Pessoa, onde por volta do 12º km passou por mim um cara que corria com uma muleta.
Continuei correndo. Por volta do 14º Km o problema que era mais emocional ganhou a companhia desagradável dos problemas físicos. Comecei a sentir dores agudas na musculatura lombar, o que prejudicou minha postura, desencadeando uma série de outros problemas musculares. Foi então que para piorar começaram os problemas nutricionais, apesar de estar equipado com gel de carboidrato. Devido a semana anterior à prova, que fui acometido por uma infecção intestinal ferrenha, perdi muitos nutrientes e sais minerais, substâncias essenciais ao organismo numa prova de longa distância.
O reflexo disso se materializou por volta do 17º-18º km, onde tive uma série de câimbras que me levaram ao chão, porque minhas pernas simplesmente travaram. Foi quando encontrei a ajuda de um senhor (que imperdoavelmente não lembro o nome) muito conhecido pelos corredores de rua em Natal, com experiência de mais de trinta maratonas. Com a ajuda dele consegui atendimento na ambulância da Unimed e também uma água de coco bem gelada. Após alguns minutos de uma delicada massagem feita por uma delicada enfermeira (com todo respeito, belíssima por sinal) da Unimed, fiquei de pé.
Mais uns quinhentos metros de trote e outra crise de câimbras. Ao chão outra vez! Fui atendido novamente pela aquela bela enfermeira, que de defeito no corpo a única coisa que tinha era uma marca de vacina no braço. Salvou-me novamente!
Quando levantei foi que me dei conta que já era um dos últimos e que certamente seria o último, pois mal me mantinha em pé. Alguns passavam e me incentivavam. Outros, certamente desocupados, avacalhavam a situação deplorável que me encontrava, fazendo comentários do tipo: “ainda dá pra pegar o primeiro lugar seu mané...” ou “é melhor pegar um ônibus...se arrastando você não chega”. Interessante! Na corrida, como na vida, tem sempre aqueles que parasitam as dificuldades alheias, na maioria das vezes porque não têm competência ou coragem pra fazer melhor.
Minha mente que já estava um lixo ficou ainda pior. O corpo também. O liame que ligava a mente aos movimentos corporais não mais existia. Desistência foi a única palavra que me veio a mente. Não conseguia mais raciocinar. Diante desse dilema de parar ou não parar, de ir ou não a diante, lembrei de algumas palavras lidas há algum tempo na obra “A Maratona da Vida”, livro este que me fez começar a correr quarenta e oito horas depois que o li. Assim leciona William Douglas, autor do livro:
“Enquanto eu não acreditei que poderia fazer, não fiz. A crença é que constrói o fato. A batalha definitiva é sempre na mente. Todo mundo conhece a parábola do besouro, que é absolutamente verdadeira: é um inseto que, pelas leis da aerodinâmica não conseguiria voar, mas como não tem a menor ideia disso, ele voa(...) você pode, se você acredita que pode”
Naquele momento eu era o besouro, sem condições físicas, mentais e aerodinâmicas nenhuma de continuar. Tais palavras me renderam mais alguns metros de sobrevivência, mas a dor na lombar era insuportável e fazia com que esquecesse dos ensinamentos de William.
Foi então que me fiz a pergunta que intitula esta “conversa”: por que terminar uma prova quando se sabe que vai ser o último? Por que não parar e dizer que me contundi, como de fato tinha acontecido?
Faltavam cerca dois quilômetros. Parece pouco, e é, mas para quem estava naquela situação era uma maratona. A resposta começou a se desenhar. Foi então que lembrei de meus amigos – que certamente estariam esperando minha chegada, pelo menos alguns - e de minha família, mais precisamente de minha mãe, que tinha feito aquele pedido que citei no início das palavras soltas que ora escrevo. Tal pedido, temperado com as lembranças de todo sofrimento que ela já tinha passado na vida, me resgatou aquela “força estranha”, inexplicável, que precisava para continuar correndo. Estava sofrendo tanto para concluir a prova que tinha esquecido que minha irmã, meus sobrinhos, meus amigos, meu treinador e até algumas primas estavam esperando eu cruzar a linha de chegada. E que o maior de todos, Deus, estava vendo tudo. Incrível! Estava esquecendo da motivação que me fez competir. Quando não se domina a mente é assim, você esquece até mesmo das razões que o faz seguir em frente.
Quando dava o “gás” derradeiro, na última subida, fui surpreendido com os laranjinhas da Natal Runner, que por ordem de Walter vieram me resgatar. Parecia que o Corpo de Bombeiros tinha mudado a cor da farda para laranja. Lembro-me perfeitamente de Emanuel, Cláudio, Assis, Flávio, e tantos outros, que me guincharam até a linha de chegada. Até as atendentes da Unimed estavam esperando, provavelmente que eu desmoronasse outra vez. Não esqueço a cara de orgulho de minha mãe, quando viu que seu pedido foi atendido, mesmo eu chegando em último. Nem do som das palmas que recebi nos últimos metros. Tampouco da vitória que acabara de conquistar sobre meu maior inimigo, eu mesmo.
A corrida não cansa de me surpreender! No dia em que tive meu pior rendimento numa prova foi o dia que fui mais reconhecido.
Aprendi com tudo isso que a maior conquista de um homem é superar seus próprios obstáculos! Que correr é muito mais que chegar à frente de alguém. Que correr é não desistir jamais. Que correr é mais um exercício para a alma do que para o corpo. Que a corrida não é para os medíocres de vontade e fracos de coração.
Pois bem, acho que acabo de responder a pergunta que intitula este humilde texto.
Sou Carlos Othon Mendes de Oliveira, tenho 29 anos, e atualmente estou treinando para a Maratona de Paris, que se realizará em abril de 2011. E não vou desistir.
Carlos Othon Mendes de Oliveira, corredor de rua e, em breve, maratonista. E-mail: c.othon@hotmial.com